sábado, 10 de outubro de 2009

Fé e muito trabalho


Voluntariado evangélico cresce e crentes empreendedores se tornam elemento fundamental do chamado Terceiro Setor

Não dá para olhar a Igreja Evangélica brasileira e ignorar a ação de um enorme contingente de pessoas que dedica tempo, dinheiro e muito trabalho para mudar a realidade de comunidades inteiras. Em vez de esperar pelo céu, eles colocam o pé na estrada para mostrar que o Reino de Deus já começou. Os exemplos de evangélicos fazendo trabalho voluntário são muitos, e não apenas no âmbito das igrejas – eles atuam em ações de saúde, segurança pública, moradia, educação. Os voluntários estão em todos os setores, fazendo até o que seria papel dos governos. CRISTIANISMO HOJE colheu histórias de cristãos com diferentes perspectivas sobre o trabalho social, que têm em comum a resposta ao chamado do Evangelho. “Os personagens bíblicos tinham profissão”, lembra o dentista Tércio Obara, de 39 anos. “Nós também temos; todo mundo sabe fazer alguma coisa. E devemos usar isso para viver o amor prático que Jesus ensinou”, completa.
Há 13 anos ele presta gratuitamente seus serviços profissionais em expedições que, começando pela periferia de São Paulo, cidade onde mora, já alcançaram favelas e grotões espalhados pelo Brasil e chegaram até a outros países. Casado com Lucimara, que também é dentista, e pai de Giovana e Rafaela, Tércio criou o Sorrindo com Cristo, um ministério que, apesar de já ter uma longa estrada, não virou organização não-governamental (ONG) nem ganhou certificado algum de entidade sem fins lucrativos. A cada três meses, Tércio, Lucimara e os voluntários que se apresentam às incursões por lugares pobres e desassistidos pelo poder público, fazem o Sorrindo com Cristo continuar existindo. São fins de semana dedicados a saúde bucal, especialmente de crianças. Além de serviços odontológicos, o time da solidariedade costuma contar com outros profissionais de saúde e com gente de várias outras áreas. Basta se apresentar, preenchendo uma detalhada ficha de inscrição e se integrar à equipe.

O planejamento é meticuloso. “Só vamos onde somos convidados, e depois de pensar muito em cada detalhe. As carências são muitas e oramos para decidir os destinos”, explica o dentista, que paga do próprio bolso os custos com os deslocamentos e com o material utilizado – até mesmo insumos caros para cirurgias e próteses. “Para quem é atendido, o custo é zero”, explica. “Deus sempre me abençoou. Nada nos falta, e não me arrependo de ter usado meus recursos assim.” Tércio, que é membro da Igreja Metodista Livre de Diadema (SP), não nega o viés evangelístico das ações. Há sempre um pastor ou um missionário prestando assistência espiritual, e equipes de jovens da igreja entretêm crianças e ensinam a Bíblia para as pessoas atendidas.

O Sorrindo com Cristo já visitou favelas cariocas, lugarejos do sertão nordestino e comunidades amazônicas. Até ao Nepal, pequeno país de milenar tradição budista da Ásia, o ministério já foi. Lá, foram feitos mais de cem procedimentos, entre cirurgias, próteses, limpezas e restaurações. “Deixamos um consultório dentário montado lá”, conta. Tércio Obara tem compartilhado suas experiências em cursos realizados em várias igrejas do Brasil. “Não podemos esperar pela ação do governo. A Igreja tem gente privilegiada, gente profissional e com habilidade para atuar de todas as formas. Essa visão é bíblica e histórica”, conclui, lembrando o exemplo de John Wesley, que há 250 anos, além de evangelizar, pregava justiça social e levava atendimento médico aos pobres da Grã-Bretanha.
Rede social – No fim de maio, aconteceu em Belo Horizonte (MG) o II Congresso Evangélico Nacional dos Profissionais de Saúde, cujo lema foi “Saúde integral para todos – Direito e missão”. Entidades como os Médicos de Cristo e a missão Asas de Socorro apoiaram o evento. Ao mesmo tempo, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas) lançou a iniciativa de cadastrar ongs pela internet, para dar forma ao Mapa da Ação Social Evangélica, numa tentativa de articular esforços dos crentes em todo país e possibilitar mobilização e troca de experiências, informações, recursos e tecnologia social. Instituições internacionais de peso, como Visão Mundial, Compassion e Exército de Salvação, estão associadas ao movimento.

A idéia se aproxima do Mapa do Terceiro Setor, iniciativa da Fundação Getúlio Vargas que já cadastrou 5,5 mil ongs pelo Brasil e facilita a vida de pessoas ou empresas que queiram doar tempo, trabalho ou dinheiro aos necessitados.

Iniciativas desta natureza se multiplicam na mesma proporção em que se agiganta a quantidade de ongs com as mais diversas finalidades e de gente disposta a fazer trabalho voluntário. A pesquisa As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil, realizada pelo Insituto Brasileiro de Geografia e Estatítica, o IBGE, junto com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, o Grupo de Instituições Fundações e Empresas e a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais, mostrou que havia em 2002 mais de 276 mil entidades do gênero no país. E este número só cresceu. Em 2006, o Programa de Voluntários das Nações Unidas, em parceria com The Johns Hopkins Center for Civil Society Studies, apontou 326 mil organizações dessa natureza no Brasil.

Casa cheia – Dimensionar o voluntariado cristão no Brasil é, porém, uma tarefa praticamente impossível. Cada igreja costuma ter sua própria política de ação social – além disso, as missões e ongs evangélicas também se apresentam como alternativas para o trabalho voluntário. Sabe-se que o serviço prestado pelos crentes representa grande parte do chamado terceiro setor. Para Márcio de Carvalho, o Coyote, de 31 anos, tudo foi uma simples questão de fé. Ligado à cena underground em Londrina (PR), onde curtia o som blackmetal, Coyote se converteu ao Evangelho em 1999, época em que trabalhava como office-boy. E, de pronto, encheu a pequena casa onde morava de moradores de rua, entre viciados em drogas, prostitutas e travestis. Ele foi no rastro do pastor Fábio Ramos de Carvalho (1965-2007), da igreja Caverna de Adulão, de Belo Horizonte, que na década de 1990 havia feito missões urbanas em Londrina e costumava deixar as portas abertas para quem quisesse entrar.

“De cara, coloquei oito moradores de rua na minha casa. Foi meio na loucura; eu não sabia o que fazer nem tinha recursos suficientes para ajudar aquela gente, mas estava cumprindo o mandamento de Jesus de amar ao próximo”, conta Coyote, que hoje é pastor e tem doutorado em aconselhamento. A iniciativa virou uma igreja, a Comunidade Refúgio, que hoje tem cerca de 60 membros, e uma organização que atende a pessoas com aquele mesmo perfil: os mais rejeitados pela sociedade. O dirigente coloca o foco nos dependentes químicos, que precisam de suporte contínuo. “Nem todos se recuperam, mas as portas estão sempre abertas”, garante Coyote.

O cearense Manoel Andrade Neto, 49 anos, doutor em química, estabeleceu uma rotina que segue à risca. Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), ele tem dedicado seus fins de semana, durante 14 anos, ao trabalho com pessoas fora da idade escolar. Gente pobre, sem muita chance de prosseguir nos estudos e muito menos de alcançar um lugar entre os aprovados no vestibular para uma universidade pública. Manoel, casado e com duas filhas, organizou um grupo de estudos em sua cidade natal, Pentecoste, a 103 quilômetros da capital Fortaleza, onde mora.

À sombra de um frondoso juazeiro, junto a uma casa de fazer farinha, o grupo de sete estudantes de Pentecoste ouviu as aulas de Manoel e pôde fazer proezas. Eles conseguiram passar para a UFC, e como a idéia do professor era a de reproduzir a experiência, os alunos que obtiveram sucesso auxiliaram outros. Já são 150 os universitários de Pentecoste. Vários grupos de estudos se formaram. E o trabalho cansativo e desgastante de Manoel, que envolveu toda a família em sua empreitada, tem gerado transformação social não apenas na pequena cidade de 33 mil habitantes. Os frutos já são incontáveis, e os alunos passaram a organizar mais grupos de estudos e associações para reivindicar melhoria da vida dos moradores. Sob a bandeira do Instituto Coração de Estudante, floresceu o Programa de Educação em Células Cooperativas (Prece) e várias iniciativas populares, com foco na educação, têm acontecido. Há 13 Escolas Populares Cooperativas. Trabalho voluntário e descentralizado, nas mais diversas áreas profissionais.

“Capital imenso” – Tudo que faço tem um significado político e ao mesmo tempo espiritual”, afirma o professor, que é membro da Igreja Presbiteriana Independente e não tem nenhuma filiação partidária. Para ele, não basta ser voluntário, é preciso refletir mais profundamente sobre o que se está fazendo. “Não sou contra uma pessoa dar sopa ao faminto, mas faz sentido alguém repetir isso por 20 anos?”, questiona, sem deixar de reconhecer a importância do trabalho assistencial. “Mas isso é muito complexo. No início, eu tinha uma certa ingenuidade, mas percebo que, se não tomar cuidado, a igreja acaba contribuindo indiretamente para perpetuar o atual estado de coisas”, avalia. Ele mostra especial indignação com os políticos. “Para onde vai o dinheiro da saúde e da educação, que não chega aos necessitados? É preciso mobilizar e cobrar, buscando transformação social”, pontifica Manoel, levantando a bandeira de um voluntariado mais consciente.
No início, lembra o professor, o grupo de estudos contava também com estudos bíblicos. Mas tudo cresceu muito rápido e a igreja não conseguiu acompanhar na mesma velocidade. O viés cristão da iniciativa, no entanto, permanece e dá testemunho do que pode acontecer quando um crente põe a mão na massa. “O maior capital social do mundo está nas igrejas. Quem tem um grupo de pessoas reunidas uma vez por semana, todas juntas?”, observa. “Milhões e milhões de pessoas se reúnem e têm um grau de afetividade muito forte. Imagine se esse capital for mobilizado para transformações políticas e sociais. As igrejas precisam focalizar esse aspecto e provocar impacto”.

Valter Gonçalves Jr.

“Coloquei oito moradores de rua na minha casa. Foi meio na loucura; eu não sabia o que fazer nem tinha recursos suficientes para ajudar aquela gente, mas estava cumprindo o mandamento de Jesus de amar ao próximo”

(Márcio de Carvalho, o Coyote, pastor da Comunidade Refúgio, que evangeliza viciados e jovens de perfil underground em Londrina, no Paraná)

“Tudo que faço tem um significado político e ao mesmo tempo espiritual”

(Manoel Andrade Neto, professor voluntário e coordenador do Programa de Educação em Células Cooperativas, o Prece, em Pentecoste, no Ceará)

Caminhos da
solidariedade

Conheça algumas instituições evangélicas que atuam no Terceiro Setor, prestando serviços comunitários nas mais diversas áreas:

Sorrindo com Cristo (São Paulo)

www.sorrindocomcristo.blogspot.com

Instituto Coração de Estudante (Ceará)

www.coracaodeestudante.org.br

Renas – Rede Nacional Evangélica de Ação Social

www.renas.org.br

Congresso Evangélico Nacional
dos Profissionais de Saúde

www.cenps.com/novo_site/default.htm

Comunidade Refúgio (Londrina – PR)

www.refugio.org.br/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1

Portal da Filantropia

www.filantropia.org

Mapa do Terceiro Setor

www.mapadoterceirosetor.org.br

Compassion

www.compassion.com/default.htm

Visão Mundial

www.visaomundial.org.br

Exército de Salvação

www.salvationarmy.org/BRA/www_bra.nsf

Asas de Socorro

www.asasdesocorro.org.br

Grupo de Institutos, Fundações e Empresas

www.gife.org.br/index.php

Associações Brasileira de Organizações
Não-Governamentais

www.abong.org.br

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